Quando minha bisavó veio da Itália para o Brasil, ela era uma menina. Tinha catorze anos e todos os sonhos do mundo, assim como eu tive aos meus catorze anos. Ela nasceu na região de Santa Maria Capua Vetere e morou em uma casa feita de pedra em Nápoles, sul da Itália.
Ela contava que podia ver as panelas penduradas na parede da cozinha tremendo quando o Vesúvio estava "enfezado", contava também que durante toda a Segunda Guerra sua prima ficara escondida no fundo de um poço, pois a família tinha muito medo de que ela fosse estuprada pelos alemães. Seu tio, desertor, fugindo da guerra caminhou por toda a Europa, foi preso em um campo de concentração e até o fim da vida manteve consigo uma colher do campo, para lembrá-lo de que sobreviveu. Por uma dessas ironias trágicas da vida, finda a guerra, a Itália arrasada e ele, velho, trabalhou desativando minas. Dado um pouco de contexto, estava minha bisavó a caminho do Brasil e o navio quebrou, deixando todos desesperados com a possibilidade de um naufrágio, ela e os outros tripulantes ficaram à deriva até serem resgatados por outro navio, que finalmente os trouxe ao Brasil. Minha avó, sua filha, com quem passei felizmente grande parte da minha vida, me disse que só foi ouvir a mãe falar italiano quando estava com sete anos e foram receber uma prima a bordo também de um navio de imigração no Porto de Santos. Ela contou que foi muito espantoso ver que a mãe dela falava outra língua, afinal eram pessoas simples, e em sua cabeça de criança, naquele dia a mãe cresceu. (Nota: a língua italiana e o alemã foram proibidas durante anos no Brasil, especialmente em algumas regiões, por causa da guerra). Apesar de todos os pesares, a imigração deu chance para minha família existir, assim como acredito que para muitas e muitas outras famílias a imigração foi a centelha da vida, a imigração foi a possibilidade, o renascimento. Em toda criança síria, tem um pouco da minha bisavó Martha. Tem um pouco dos nossos avós em todos aqueles que chegam e em todos aqueles que são deixados para trás, num oceano de muros. A família de todo imigrante é também nossa família, há um pouco do nosso sangue no sangue de todos aqueles que estão hoje, como minha bisavó menina, à deriva esperando o resgate. Abramos as portas.
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Até os dias de hoje vemos muitas pessoas seguindo a teoria que algumas igrejas pregam: de que o pecado do nosso mundo é o indivíduo, não a sociedade. Transferindo o chamado "pecado social" para o pecado carnal, sexual. O homem é impuro, o sexo é impuro, a sociedade é limpa, cheirosa, anti-séptica. Será? Dentro desse processo social, que não surgiu pela igreja, mas claramente foi endossado por ela em suas parcelas mais conservadoras, as mulheres são as mais impuras. Isso se reflete na forma de vivermos, de consumirmos e de nos expressarmos social e individualmente. Quando vamos as drogarias, vemos milhares de produtos para a higiene íntima da mulher, desodorantes para vagina, moldes para depilação, além de uma série de produtos para garantir que nós, as impuras, sejamos menos sujas. Os homens, pelo visto, já nascem com as genitálias limpas, não havendo razão para se preocupar. A companhia de metrôs de Nova York, "a cidade mais civilizada e livre do mundo", proibiu este ano a propaganda de uma calcinha voltada para mulheres que estavam no período menstrual. Porque a menstruação é, obviamente, muito suja para a sociedade americana, cujo sangue derramado no Oriente Médio não parece causar tanto desgosto quanto o período menstrual de suas mulheres. E por falar em Oriente Médio, a realidade do estupro e de outras formas de violência contra a mulher no Ocidente não são nesse momento parâmetro para essa excursão "civilizatória" engajada por grandes lideres americanos. A mulher que deve ser protegida, ao seu ver, é a mulher que consome, portanto a mulher que trabalha. A mídia mostra como conquista social muitas "anti-heroínas" (Frida Khalo, Malala, entre outras) sendo vendidas agora como bonecas, tendo suas historias contadas em livros infantis. Não descarto a importância desse processo, porem temos que nos lembrar que a mulher hoje possui um poder de compra muito maior do que possuía há cinquenta anos atrás, logo, e de se esperar que um mercado voltado para nós, mulheres, cresça. Porem, este foi infelizmente pensado para atingir nosso poder de compra e não para suprir as necessidades que temos como pessoas ou para representar genuinamente os valores que carregamos. O corpo é nosso, tem que ter vacina anti HPV para adolescente sim, tem que discutir aborto sim e denunciar discurso de ódio e qualquer outra forma de violência sim. O corpo é nosso, o pecado é de vocês. Não, este não é um texto de auto-ajuda. Pelo menos, não é a intenção primeira (nem ultima) com a qual escrevo. É antes um relato de como temos motivos sociais e pessoais que cravam a ideia de que não seremos aceitos, amados, respeitados por todos os séculos dos séculos amém se não agirmos assim ou assado (e cumprirmos com o que esperam de nós, claro).
Sejamos francos, quem somos nós para os outros esperarem alguma coisa? E vice versa. Quando foi que aprendemos que ser amados, aceitos e respeitados pelos outros é mais importante do que sermos reais? Em que parte da nossa vida começamos a nos preocupar mais com holografia de nós mesmos do que com o que realmente somos? E o pior de tudo: fazemos tudo isso sabendo que nunca criaremos uma holografia perfeita. Primeiro porque sendo uma holografia, ela é irreal; segundo porque as pessoas são por natureza "queredoras", esperadoras e assim o ciclo sem fim da expectativa alheia faz com que nunca sejamos suficientes. Ao ligarmos um projetor a luz vai para a parede ou outra superfície plana e mostra a imagem que inserimos. A imagem do projetor na parede, no mural, na time line, na sala de jantar, no almoço de natal é o que queremos que os outros vejam de nós , a bonita, anti-séptica, socialmente aceita parte de nós mesmos. Nessas horas ainda acho que é melhor ser meio Zagalo, "vocês vão ter que me engolir". Ou não. Mas uma coisa é certa: a luz é mais bonita quando é voltada para nós mesmos, não para a parede vazia das expectativas dos outros. Ser real ainda é mais bonito do que ser holográfico, doa aos olhos de quem doer. Dia dezesseis de Outubro de dois mil e quinze e eu acordei meio Darcy Ribeiro: com um sentimento de fracasso.
Quando eu era pequena achava lindo ser inteligente. Eu não prestava muita atenção no que as outras meninas usavam ou brincavam, mas queria saber se eram inteligentes, se eram engraçadas. Eu preferia ficar entre as pessoas mais velhas e copiar o jeito que elas falavam, a postura e todo o resto, isso me fazia sentir melhor na minha pequenice.
Na minha cabeça de criança, ser inteligente era sempre ter uma resposta na ponta da língua, ser afiada, sagaz, mas só valia se você fosse uma pessoa boa. Do contrário, a inteligência se esvaía em qualquer outra coisa que não raciocínio. Acontece que a sagacidade e rapidez de pensamento eram também ironia, uma linguagem na qual me tornei especialista, para o terror dos meus pais e alegria dos meus amigos, que sempre se divertiram com meu jeito de falar. A inteligencia virava então deboche. Eu demorei muito tempo para discernir os dois, para separar o que era irônico e o que era leve. Hoje em dia aquela admiração enorme pela "rapidez de raciocínio" do outro mudou de forma e a inteligência não está mais ligada a idade ou a maneira de falar, mas ao conteúdo e a autenticidade de cada um. Caetano dizia que narciso acha feio o que não é o espelho e ele tinha razão. A inteligência, assim como a postura e a maneira de olhar a vida, são subjetivas e não por isso menos belas. Já o discurso pesado, irônico a gente pode deixar para trás, junto à criança que olhava os mais velhos. Num momento em que o mundo todo olha para a crise dos refugiados na Europa e milhares de ações são tomadas, coletiva e individualmente, para criar possíveis soluções, algumas pessoas parecem enfrentar uma crise ainda mais grave: a crise dos que ficaram.
E não falo daqueles que não atravessaram as fronteiras ou cruzaram oceanos, falo daqueles que ficaram parados no tempo, ficaram parados nos "bons e velhos tempos das vacas gordas" (mas afinal, eram elas tao gordas assim? bem, isso é outro assunto), onde tudo era melhor, onde o leite fervia mais rápido, enfim, ficaram presos em uma mentalidade quadradinha, saudosa, simplista, anti-séptica. Foi tamanha a chuva de abobrinhas que cobriu a mídia (infelizmente, tudo é opinião nesse raio de seculo): "eles querem roubar nossos empregos", vão virar mendigos", "são terroristas", isso para pegar leve na reprodução do discurso do ódio gratuito. Curiosamente, eu fui verificar as paginas das pessoas (sim, eu fiz isso) que proferiram tamanha compaixão para com o próximo: maioria esmagadora cristã. Mas gente, não foi Madre Teresa quem disse que ninguém fica pobre por partilhar? Não era Cristo estrangeiro? Não me levem a mal, não acredito que todos os cristãos pensem dessa forma, até porque o Papa, ícone maior da Igreja, mostra-se incrível quanto a esse e outros quesitos. Para mim ele é como um Mujica do Vaticano. A crise dos refugiados é reflexo do ser humano que nos tornamos, crise individual e coletiva, de um pensamento que parou no tempo. Ontem o Congresso Brasileiro, em sua "infinita sabedoria", votou no que acredita ser constituição familiar: papai, mamãe e filhos, excluindo uma gama enorme de famílias desse conceito. O que o congresso nacional não sabia é que existem algumas perguntas peculiares que podem nos ajudar a identificar uma família e seus membros. Listo abaixo alguns dos dados que não foram levados em conta pelos deputados:
- se existem brigas para ver quem vai sediar a ceia de Natal, você possivelmente faz parte de uma família; - você frequentemente discute com as pessoas que convive sobre quem não trocou o refil do papel higiênico? (essa é fatal) - se nas festas de final de ano tem alguém falando do "Lularápio", da Dilma ou perguntando dos namoradinhos (as), aumentam também as possibilidades de você estar em um núcleo familiar; - alguém deixa a toalha molhada em cima da cama? - você compra algo novo e quando vai ver, foi usado por algum membro da casa? - você possui animais a quem chama de filhos? -as pessoas com que você mais convive são inconvenientes de vez em quando? -apesar de responder positivamente as alternativas anteriores ,vocês se amam? Se sim, parabéns! Vocês são uma família! A família de verdade existe quando a gente escolhe um ao outro, quem quer que o outro seja, não deixe que te digam o contrário. Benvenuto a casa nostra! Hoje saí para um café com duas amigas e me dei conta que consegui a façanha de procrastinar por dez anos. Vou explicar melhor.
Essas amigas tem uma irmãzinha, Isadora, que acaba de completar dez anos de idade. Eu fui convidada para batizar a Isadora quando ela ainda estava na barriga, o que se pararmos para fazer as contas dá mais de dez anos (mas não vamos fazer isso). Enfim, hoje eu parei para pensar porque diabos eu ainda não batizei a Isadora. Eu adoro a menina, a família, o cachorro, todo mundo. Foi então que esbarrei em algo que se chama "curso de batismo". Eu fui criada em uma família católica e fiz todos os cursos que uma criança nessas condições é obrigada, digo, convidada a fazer: de catequese até crisma, o que somados dão todos os domingos da minha infância. Quem fez catequese de domingo sabe do que eu estou falando: aquele calor, sono, cheiro de frango na rua e uma pessoa falando sobre um deus que mora longe. Quando eu era pequena e rezava, achava que deus morava na casa da minha avó, porque era la que eu me sentia bem. Se algo me afastou da igreja, foi a minha consciência (ou falta dela) e os domingos que gastei naquela sala de manhã. Até pensei que com ela mais velha, para não ficar feio para mim, poderíamos tentar trocar de religião sei lá, para uma dessas que o batismo só acontece mais tarde. Brincadeira, vou batizar a Isa, tomar vergonha na cara e fazer o tal curso. Mas porque eu amo a Isa mais do que eu amo a igreja. Mas já aviso: filho meu não vai ser catequizado não. Vai gastar o domingo jogando bola, lendo revista em quadrinhos e coisas de criança, vai aprender que a relação com deus é a relação com o próximo, aquela que é verdadeira e acontece na rua e nas casas dos avós. |
AutorComo diria Alice Ruiz: Sou uma moça polida levando uma vida lascada. Brasileira, vinte sete anos e alguns grilos na sacada. |