Um dia desses saí para tomar um café na rua e me dei conta de que este é um dos meus programas favoritos, desde sempre. Lembro de que, quando criança, ia ao cinema na rua Monsenhor Soares com meu pai e parávamos sempre antes da sessão no bar do "seu" Silvino. Eu via todas as outras crianças indo à doceria, mas eu ia ao bar com meu pai: ele assistia jogos de futebol e eu brincava entre os bancos. Vez em outra, ganhava chocolates e balas dos donos, mas religiosamente ganhava chocolate quente.
Eu lembro de ficar irriquieta esperando para ver uma portinha na parede se abrir e uma mão bonita de mulher passar um bule de café para o bar. Hoje entendo que atrás da minúscula porta ficava a cozinha onde, dentre outras coisas, fazia-se o café dos velhos e meu chocolate. Quando pequena nunca pensei nisso, era apenas a mão da mulher, a beleza e a parede, a expectativa do chocolate e as ideias mirabolantes sobre a dona daquela mão. Tudo isso me distraia da doceria com crianças em que eu não estava. Eu era a criança em meio aos adultos. Algum tempo atrás meu telefone tocou e era meu pai, ele estava com uma voz nostálgica e logo disse: "a dona Eva se foi". "Dona Eva? Dona Eva?", pensei comigo, eu não conhecia nenhuma dona Eva. Então sentei na cama: "dona Eva: a mulher da mão!". Fiquei a pensar o quanto de sentimento eu tinha, sem saber, por essa mão. O quanto essa mão, essa senhora e os chocolates povoaram minha cabeça de criança. E eu chorei. Quando eu terminei a faculdade e voltei para a cidade dos meus pais, passei em frente ao bar e resolvi entrar. Ivo, o filho do "seu" Silvino estava lá e lembrou-se do meu chocolate e de mim, pequenina. Ventava, desses ventos que só quem morou em Itapetininga conhece, e ele perguntou como eu havia passado em todos esses anos. Eu disse que sentia saudade e falei de lembranças. Ele se emocionou, fechou o bar e foi comprar chocolate para mim. As memórias eram tão doces que todos pararam para ouvir. Era agora eu a adulta em meio as crianças.
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Cheguei no Canadá faz três meses, muito frio e dois quilos a mais. Na verdade são alguns pounds, mas "arredondei" para dois quilos porque, mesmo contra a vontade, sou formada em humanas e nós temos essas liberdades. Abaixo, algumas das minhas lições canadenses: 1. Na hora de fazer as malas, não se preocupe com os casacos, preocupe-se com as meias: os casacos não suportam o frio daqui e invariavelmente você vai ficar de meias. Quando se chega na casa de alguém no Canadá , por causa da neve e do sal que tem nas ruas, é educado tirar os sapatos e ficar só de meias. Algumas pessoas oferecem slippers (espécie de pantufas para ficar em casa) para as visitas.De qualquer maneira, se você é como eu que pensa que a vida é curta para combinar um par de meias, repense; 2. O Canadá é lindo e as pessoas são gentis e muito educadas, os canadenses pedem desculpas por tudo (mesmo!) portanto se você estiver parado na rua e alguém passar ao seu lado e pedir perdão por isso, não se assuste, é normal. Assim como falar palavrão em São Paulo: não precisa de motivo; 3. Faz MUITO frio e toda vez que você se lembra de sair no Brasil e sua mãe pedir para você colocar um casaco por causa da friagem, da vontade de chorar de raiva (desculpa, mãe); 4. Não se engane com um dia de sol, mesmo que dentro de casa você esteja aquecido, a temperatura fora vai estar negativa e antes que você perceba estará na janela cantando "let it go"; 5. Somos desencanados é isso e estranho. Eu sempre me achei a mais neurótica das criaturas, mas aqui os brasileiros são vistos como um povo mais desencanado, que está sempre festejando e feliz enquanto tudo dá errado, ou seja, somos vistos como cariocas. Faz as malas, guarda a grana e combina as meias, vale a pena! Sempre que escuto alguém dizer que vai ter bebê, pode ser amiga próxima ou alguém que ouvi conversar no metrô, torço para que venha mulher. Sempre torci secretamente "que venha menina". Se você sempre quis um menino, não me conte. Ser mulher vem com o tempo, não porque aprendemos a ser mulher adicionando mais e mais camadas de convenções sociais do que é o feminino (usar saia, ser delicada, princesa, encantadora), mas porque um dia finalmente nos livramos de todas essas camadas e nos encontramos nuas: mulheres. Se com a entrada da mulher no mercado de trabalho, empurrada também pela mão controversa do capitalismo, a mulher teve a oportunidade de ser dona do seu nariz, nos últimos anos com a revolução informacional a mulher mostra que finalmente está conquistando o que faltava: o resto do seu próprio corpo. Na manhã de hoje a ONU reconheceu o aborto como direito da mulher, portanto direito humano. Sim, eu ainda vou torcer muito para vir menina, mas só se a mulher quiser. Palavras como sororidade e empoderamento nunca foram tão ouvidas como nos últimos anos, mulheres que nasceram em corpos biologicamente masculinos são tão ou mais mulheres que eu e isso, sim, me enche de orgulho. A conquista de direitos pela mulher no século XX foi de dentro para fora, e hoje, ainda que tardios, começamos a enxergar os primeiros traços de sua conquista por direitos de fora para dentro de seu próprio corpo. Quando uma mulher vence, eu venço com ela, pois como diria Vilaró: "sem mulher não há criação". Quando eu era mais nova costumava pensar que se tivesse uma filha um dia e alguém a presenteasse com conjunto de panelinha para brincar, ia fazer voarem pela janela: o brinquedo e a pessoa. Cresci um pouco e hoje penso qu e se isso acontecer, minha filha decide se brinca ou se taca pela janela, porque ela vai ter o direito de ser o que ela quiser: dona de casa, pilota de avião e até mesmo homem, se assim ela preferir. Recentemente a filha de sete anos de uma grande amiga teve sua atenção tomada por estar de saias brincando e a calcinha apareceu, em uma resposta natural como um piscar de olhos falou: "se te incomoda, não olha". Eu e minha amiga olhamos atônitas uma para outra e o silêncio tomou conta como uma respeitosa salva de palmas para essa pequena. O caminho de conquistas e luta da mulher é longo e, não havendo ainda limites que margeiem a palavra liberdade, ouso dizer que é eterno. Mas assim como o passar tempo, a mulher também é precisa e inevitável: a mulher acontece. Créditos da imagem: Kate Parker Photography - Strong is the new pretty series Lembro de achar na estante da sala, dentre tantos livros de guerra, um que particularmente me chamou a atenção, era o "Gente e Bichos" do Érico Veríssimo. Eu devia ter de nove para dez anos. Por um desses motivos que a gente não entende, eu nunca me esqueci desse momento de estar sozinha na sala e encontrar Gente e Bichos no meio de tantos outros, escurecia e eu senti uma alegria muito grande em achar um livro sobre animais. Foi o meu primeiro livro sem muitas figuras, o primeiro livro "grosso", me lembro de sentir adulta enquanto lia, sentada na rede da varanda. Acho que foi nesse momento que os bichos para mim viraram coisa séria, pois eu também, de alguma maneira, crescia. Hoje quando olho a minha volta e sinto o mundo pesar, procuro um bicho. Passeio com o cachorro, dou comida para o gato, olho um passarinho. É como se no meio de tantos caos ainda persistisse a doçura das coisas sérias da vida, o espaço do livro dos bichos em meio as livros de guerra. Para os meus bichos, com saudade e amor. "A gente tem que se assumir".
Cresci ouvindo minha avó me dizer isso em todos os momentos de insegurança da minha adolescência e também nos anos da minha vida adulta que pudemos compartilhar. Minha avó era aquela mulher que colocava a todos para cima, era impossível ir a sua casa e não sair revigorado. Mesmo o mais contido dos seres humanos era capaz de sair de lá cantando, confiante e pronto para ganhar o mundo. Ir à casa dela era renascer. Foi ela que me ensinou os primeiros passos de dança e que comprou meu primeiro bilhete aéreo. Que me ensinou a passar batom e a trançar o cabelo. A ser educada e também a mandar a pastar, a tomar vinho pela manhã e café antes de dormir. Mas assim como a viagem de avião que me dera, o tempo também voou. Eu já morava fora e ela me telefonava todos os dias para saber de mim, falar da vida, dos animais, da quimioterapia e dos nossos planos e sonhos. E de como eu deveria ser livre, de como liberdade era bom. Longe de ser a senhorinha de vestido de poás e colar de pérolas, ela embarcou em aventuras no rio Amazonas, voou sobre o Brasil e cantou no rádio. Pintou o cabelo, dirigiu sem carteira de motorista ao setenta e mergulhou no mar. E assim como todas as heroínas, ela um dia voou para longe. Seus pés eram muito delicados para este chão e suas asas grandes demais para não voar. Sempre que penso nela, não há um pingo de melancolia ou tristeza, mas sim um sentimento de alegria e de gratidão imensa pela nossa proximidade, a medida que amadureço e entendo sua importância e presença, esses sentimentos só fazem aumentar . Se passar para um novo ano é renascer, eu desejo entrar neste próximo com a sensação levinha de cantar de felicidade, como saindo da casa de minha avó. Se todos os rios correm para o mar e somos todos líquidos feito Mariana a Veneza que a cobre é também da nossa lama Mariana lá está para que nunca nos esqueçamos de que não Vale o choro e a reza sem a mão doce do rio que já não mais a preza. Mariana, que foi capital de Minas que ouro à Coroa enviou Caramuru escreveu Santa Rita Durão pariu Tem também sangue e ruínas e retratos no jornal Minas já não mais possui Rio Doce porém um rio de lágrimas em meio as privatizadas colinas e as mãos qui'çá marcadas' de dinheiro e sangue Minas não tem mar Minas tem mais, Minas tem Mariana Créditos da foto: Câmara de Mariana Hoje faz vinte e seis anos da queda do muro de Berlim. Quando o muro de Berlim foi derrubado eu tinha um ano de idade. De lá para cá, aprendi a ler, escrever, andar de bicicleta (e a cair), fazer burrada e pedir desculpas, a morar sozinha, me formei em uma universidade e quero aprender a dançar. Nesses vinte e seis anos porém, em que todos aprendemos tantas coisas, sinto que não aprendemos a parar para pensar. Quando eu tinha um ano havia onze muros espalhados pelo mundo, hoje existem cerca de sessenta e seis muros catalogados, fora os muros sociais, aqueles invisíveis: que permitem que um cachorro de madame entrem no shopping numa tarde de domingo, mas não uma pessoa pobre ou "mal vestida". A internet que veio com a "imaculada" intenção de nos abrir portas, de nos levar (sem sair de casa) aos mais belos museus do mundo, a conhecer e nos integrar a novas culturas e pessoas, parece ser usada cada vez mais para fechar nossos pensamentos, mostrar o próximo como estranho e o desconhecido como perigoso ou errado, instigando o ódio contra o oprimido e a empatia pelo opressor. Estamos vendo memes ao invés de Da Vinci. Não me levem a mal, eu gosto de rir (e como!) e também não abro o computador para ir ao Louvre, mas nunca me esqueço de um professor que um dia me disse: quando coisas sérias começam a virar piada demais, vivemos um momento perigoso. A fronteira dos Estados Unidos com o México é uma alegoria desses perigosos tempos em que vivemos: dinheiro circula (principalmente pela presença de empresas estado-unidenses de ponta no norte do México a explorar mão de obra barata), porém pessoas não podem cruzar a fronteira. Hoje faz vinte e seis anos que o chamado "Muro da Vergonha" caiu e, como fosse semente, germinou, espalhando ramas pelo mundo todo: de intolerância, ódio e medo. Bretch dizia que quando as maldades se multiplicam, tornam-se invisíveis. Ele tinha razão. Créditos da imagem: "Diário de Berlim Ocupada" - Ruth Andreas-Friedrich
São seis horas da manhã e eu acordo num semi-sono gostoso, penso em aproveitar a cama, enrolar. Me viro de um lado para o outro preguiçosa, apenas para sentir o cheiro limpo e fresco dos lençóis. Devagar um novo cheiro invade a casa, é meu pai na cozinha fazendo o primeiro café de tantos que tomará durante o dia. Me delicio com o cheiro e penso que talvez deva me levantar...só mais cinco minutos. Meu pai começa a ler algo em voz alta para minha mãe, estão falando de política. Fico na cama escutando, quietinha, como se eu fosse ainda menina. Falam de idealismo, chamam Serra a Nosferatu e de contas a pagar; de processos e de como o tempo tem voado. Eu que não rezo, faço quietinha uma oração pelos pais que tenho e agradeço pelos minutos que ainda posso ficar na cama a ouvi-los, menina. Leila Diniz sempre foi o exemplo de mulher que admirei, não apenas pela liberdade, mas também pela doçura. Acho que ela conseguiu alcançar , durante a curta vida que teve, o que Nietzsche colocava como sendo o nosso propósito maior: tornarmos aquilo que somos. "Não se nasce mulher, torna-se", disse Simone de Beauvouir. Leila não apenas tornou-se Leila, como tornou também Leilas tantas outras mulheres: Amélias, Madalenas e Macabéas, que ao seguir seu exemplo puderam encontrar suas próprias formas de liberdade. Por esse e tantos outros motivos sempre penso que Leila foi grande. Dois meses depois de uma entrevista franca ao Pasquim, onde ela falava abertamente sobre liberdade sexual e sua vida particular ("o livro aberto", como ela dizia), foi aprovado no Brasil o Decreto 1077, apelidado de "Decreto Leila Diniz", que instaurava a censura prévia à imprensa. Leila for perseguida moral e politicamente pelas classes mais conservadoras. Apesar de tudo, Leila dizia -se "uma moça livre", em plena ditadura militar. Haja coragem para ser Leila! Hoje quando escuto falar em "novo feminismo", penso em Leila. Penso que não há o novo e nem o velho, as lutas ainda são as mesmas: pelos mesmos direitos e liberdades que nunca tivemos. Amanhecemos "de Atenas" e fomos dormir "de Amsterdam". Obrigada Barbaras, Lígias, Ninas, Rosas, Carolinas, Angélicas, Ritas e Luízas, hoje somos todas, juntas, Genis. #pilulaficacunhasai #foracunha Créditos da foto: Matheus Rodrigues |
AutorComo diria Alice Ruiz: Sou uma moça polida levando uma vida lascada. Brasileira, vinte sete anos e alguns grilos na sacada. |